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O Tempo Das Pátrias Bêbadas


O Tempo Das Pátrias Bêbadas
(Jaime Vaz Brasil, Flávio Vaz Brasil)

Pelas esquinas um encontro súbito
Encontra logo um destino concreto.
Se vê nos muros um silêncio límpido
Gritar socorro por seu modo quieto.

E nos porões o batalhão dos sádicos
Repassa um filme de dez mil reprises,
Reinventando os artefatos sórdidos
Para que a dor melhor se realize.

Esporas negras sobre um lombo atônito
Marcam nas almas suas faces duras.
Quem mais enxerga nesse tempo áspero
Possui nos olhos uma venda escura.

Sobre o país cai a miséria crítica
E se derrama longe dos tiranos.
Vão pelo espaço pássaros metálicos
A vomitar rebeldes no oceano.

Dentro dos lares dessa gente esquálida
Televisores cegos-surdos-mudos
Mostram um mundo colorido e lépido,
Ganham dinheiro e força atrás do escudo.

E proliferam pelas pátrias bêbadas
Um turbilhão de mórbidas clausuras.
Quem mais enxerga nesse tempo bárbaro
Possui nos olhos uma venda escura.

Homens de pedra inventando pélagos
A espalhar sementes de vazio
Fazem canteiros das esperas túrbidas
Onde a verdade cresce por desvios.

Os ditadores com poderes mágicos
Criam sumiços num simples contato,
E das cartolas tiram coelhos cáusticos
Roendo o rosto do povo pacato.

Vai o espelho das espadas múltiplas
A refletir a sombra das torturas.
Quem mais enxerga nesse tempo ácido
Possui nos olhos uma venda escura.

Muitos viventes num estranho cálice
Bebendo lentos goles de agonia
Sorvem as normas no aço da lâmina
Que nas gargantas forjam afasias.

E nas paredes, por manobras gélidas,
Vão se calando vozes insurgentes.
Depois dos tiros desce um rubro cálido
Que uma elegia escreve mansamente.

Milonga Borgeana


Milonga Borgeana
(Jaime Vaz Brasil, Pery Souza)

Dentro do livro de areia
A ampulheta do tempo
Virou do avesso.

Quase sangrando nos becos
A fome de um tigre
Em mim.

E farejei as palavras no ar
A mão do vento se abriu
E pôs em folha suspensa
A Milonga Borgeana.

Mil criaturas da noite
Transpassam inquietas
Os vidros de um bar.

Monstro Aqueronte passeia
Na ponta dos pés
Em nós.

Deu-me um espelho esquisito e falou
Da forma que a vida tem
De pôr no rosto uma cara
Que a alma desenha.

Milonga Borgeana
Milonga de sombra.

Um tigre de quatro cores
Perdeu-se em teu labirinto.

Milonga Borgeana
Espada de vento

Nas calles de Buenos Aires
Nas calles de mis entrañas.

El viejo tiempo se espraia
Circula a doutrina
E suspende o punhal.

No corredor
Os rangidos do piso
São tão iguais...

Gume afiado, o destino que fez
A mão do escuro fechar
E pôr em muro de sombra
A Milonga Borgeana.

Abre-se a fresta del sueño
E se adentra um mistério
Um segredo e o frio.

Entro com eles
No espanto da casa
Del Asterion.

Ah, quem me dera eu pudesse tocar
Um solo de bandoneón
Ao olho atento que mira
O futuro e o mundo...

Milonga de Sombras


Milonga de Sombras
(Jaime Vaz Brasil, Vitor Ramil)

As sombras que me rodeiam
Virão um dia cegar-me.
Seus vultos lentos e escuros
Incitam mudos alarmes.

O vidro das ampulhetas
Espelha as sombras que sinto
Na luz que aos poucos se afasta
Perdida em meus labirintos.

A mão que empunha o destino
E entre as sombras passeia
Derrama sobre meus olhos
Negros punhados de areia.

Um tigre manso e selvagem
Nas cores forja o oposto
Enquanto garras de sombra
Insere contra meu rosto.

A noite áspera e longa
Põe vendas em minhas vistas
E em suas sombras perenes
Me aflige e me conquista.

A mão que empunha o destino
Punhais de sombra me entrega;
E me reflito, impassível,
Em suas lâminas cegas.

Clave De Vento


Clave De Vento
(Jaime Vaz Brasil, Adriano Sperandir)

Sair do poço é sangrar os dedos
Dos pés, da alma, dos veios e veias
Deixar-se preso, mergulhar no espelho
Nadar na insônia das secas e cheias

Abrir o novo é rasgar as águas
Sem barco ou leme
Sem ter porto ou cais
É voar sozinho em clave de vento
Gritar nos olhos cada nunca mais

Ver-se por dentro é morder a entranha
Do que é estranho, do que não se explica
Cravar as garras no próprio destino
No desatino de quem parte ou fica

Viver a vida é dançar no abismo
Sem ter cordames na raiz do medo
É ter a alma solta
E nas algemas morrer bem tarde
Mesmo sendo cedo

Abrir o tempo é rever lembranças
Do que em pequeno era dor e espanto
Viver a pleno cada desespero
Mesmo sem colo para o acalanto

Saber da vida é pensar vivendo
O que sabemos pouco nos demora
Contar segundos é sempre um a menos
Por mais que o tempo estale nas esporas

Abrir os olhos é rever retratos
Gastar as unhas contra a ventania
Até o quando de abraçar a hora
Que engole a sombra
E adormece o dia

O Amor À Sombra Da Fuga

O Amor À Sombra Da Fuga
(Jaime Vaz Brasil, Ricardo Freire)

Filmar o amor em fuga
Enquanto assim se apresenta
É algo raro, difícil:
Só mesmo em câmera lenta.

Não da máquina, mas dele
No breve instante em que some
Contra algum muro de nuvens
E perde o rosto e o nome.

Lentificá-lo em palavras
Seria, talvez, um jeito
De tomar-lhe bem o pulso
Ou mesmo sondar-lhe o peito?

As razões de cada escape
Às vezes correm às vistas
Mais escoladas na história
De ler motivos, em lista.

Quando há medo, mesmo ao pássaro
É falso o vôo liberto.
É fuga em busca de água
Rumo à boca do deserto.

O pensá-lo mais concreto
Esgota a água e a sede.
É a colher gasta em silêncio
No arranhar da parede.

Esse amor, alma de elástico,
Atravessa o vão do muro
E enquanto foge de si,
Engole o próprio futuro.

Por isso, leva-se aos ombros
Em sina longa e estranha:
É sombra pulsando aos passos
Que ao corpo sempre acompanha.

E assim - por onde adormeça -
Carrega nele o dilema
De, mesmo ao dizer-se livre,
Expor as suas algemas.

Presságios

Presságios
(Jaime Vaz Brasil, Ricardo Freire)

Eu te pressinto, amor
Detrás de cada janela,
No fundo de cada espelho.

Eu te contemplo, amor
Enquanto fecho meus olhos
Nas solidões de domingo.

Eu imagino teu rosto
E me transpasso às paredes
Da face branca do sonho.

Eu adivinho teus passos
Nas multidões impassíveis,
Nas aflições do caminho.

Eu te pressinto na espera,
No entardecer do silêncio
No corpo claro dos ventos.

Quem dera amor, quem me dera
Poder olhar-te por dentro,
Poder tocar-te um momento.

Quem dera amor, quem me dera
Roubar à luz de um presságio
A sombra mansa da entrega.

Procissão

Procissão
(Jaime Vaz Brasil, Vinicius Brum)

Nós
A multidão caminhante
A multidão transpirante
Desfiamos o rosário nos degraus deste calvário
Exortamos heresias e depois na romaria
Enjaulamos a cadeado alguns dos nossos pecados

Nós
E a nossa prole crescente
Aguardamos impacientes
Que desponte um milagreiro
Em meio a tantos desejos

Que através das oferendas
Por um tempo de remendam
A nossa alma ruída
Pelas agruras da vida

Sabemos
Que apesar das liturgias
A fome nos segue há dias
Que apesar das benzeduras
Estamos longe da cura
Que apesar dos sacramentos
Mantemos nossos tormentos

Também sabemos que a fé
Às vezes balança
Na gangorra da esperança

Mas acreditar é preciso
E por isso seguimos
Em nossa estrada
Pois todos sabemos
Que alem da fé
Não temos mais nada

Os Quatro Espelhos

Os Quatro Espelhos
(Jaime Vaz Brasil, Flávio Vaz Brasil)

Quantas nuvens
Passarão ligeiras
No olhar das aves?
No olhar das aves há um espelho.

Quanta estrela
Dormirá sem brilho
No olhar da lua?
No olhar da lua há um espelho.

Quantos verdes
Correrão exatos
No olhar dos tigres?
No olhar dos tigres há um espelho.

Quantas cores
Pulsarão mais vivas
No olhar dos cegos?
No olhar dos cegos
O espelho vai no centro
Da alma, vista por dentro.

Coração De Milonga

Coração De Milonga
(Jaime Vaz Brasil, Pery Souza)

Enquanto o tempo desenhava
Teu rosto dentro do meu corpo,
Saudade em dó menor cantei mil vezes.

Falei de nós, um tanto triste
E um bandoneón chorou comigo:
Amor, quando é amor, não morre nunca.

E pra fugir de cada sombra
Da solidão, que erguia os olhos,
Me disfarçei na dor de um sustenido.

Amor, quem sabe um dia desses
No espelho da milonga eu veja
Teu beijo renascido num segundo.

Por ti, amor, cantei o mundo
Em noites longas que aprendia
A amar em sol maior
E tempestades...

Amar nas ruas, bares, campos
Amar em solos de guitarra.
Amar com toda voz
E em silêncio.

Amar como só poderia
Meu coração de milonga.

Quem sabe ler paixões humanas
Na vida, sempre tão estranha,
Se o amor as vezes fecha toda casa?

Andei por mares, vales, luas
Andei em pedras, muros, portos,
Amor, varei coxilhas do avesso.

E andei no rastro do teu nome
No meu cavalo de brinquedo
Colhendo a flor azul que me pedias.

Amor, quem sabe um dia desses
Na alma da milonga eu veja
A face calma e breve das respostas...

Por ti amor cantei o mundo
Em longas noites que aprendia
A amar em sol maior
E tempestades...

Amar nas ruas bares campos
Amar em solos de guitarra.
Amar com toda a voz
E em silêncio.

Amar como só poderia
Meu coração de milonga.

Tablados De Vidro

Tablados de Vidro
(Jaime Vaz Brasil, Paulo Deniz Júnior)

Quantas claves dormem
Sobre o frio del hombre?

Quantas manos cingem
Colos de guitarras?

Quantas vozes podem
Derramar su canto

Em silêncio
A rondar mi soledad?

Quando a sombra dorme
Um outro sol inventa.

O planeta gira
E el corazón se inquieta,

Beija a cor del viento
Que traduz e acende

A janela
De mi cuerpo en soledad.

Ah, meu coração
Mora tan lejos de mi...

Onde foi parar, não sei.
(Vem milonga, vem dizer).

Ah, coração
Não me deixe assim:

- Aquiles -

Dançando flamenco
Bem devagar

Em tablados de vidro.

Despedida

Despedida
(Jaime Vaz Brasil, Ricardo Freire)

Quando a guerra não foi mais que um simples jogo
Quando o medo fez mais cedo um outro escuro
E o futuro se fez logo ali, dobrando
Eu vi, amiga: era tarde.

Quando o mundo foi além do meu quintal
Quando a vida foi jornal e não história
E a memória fez a contramão do dia
Eu vi, amiga: era tarde.

Quando o vento não me fez abrir os braços
Ao abraço sideral de estar voando
E a pandorga me fugiu sem dizer quando
Eu vi, amiga: era tarde.

Quando o guarda que dormia nos brinquedos
Pôs o dedo no olhar da minha pressa
E quis ver o que a vida fez de mim
Eu vi, amiga: era tarde.

Quando a noite foi algema no meu sono
E eu, de dono, fui escravo de um relógio
E no pulso pus dilema e cotidiano
Eu vi, amiga: era tarde.

Quando o tempo foi julgado em outra lei
E a tristeza me beijou, tão natural
Nas paredes, no vazio fundo da casa
Eu vi, amiga: era tarde.

Muito tarde.

A Concha Das Horas


A Concha Das Horas
(Jaime Vaz Brasil, Ricardo Freire)

Leva o teu sorriso, por favor leva pra longe.
Leva o que puderes, leva as minhas dores todas.
Leva o teu olhar e leva o que mais achares
E eu acolherei, desta vez, o teu silêncio.

Guarda o teu amor, num lugar que não existe.
Deixa, eu mesma lavo o que nos sobrou de triste.
Pelo nosso quarto, pela cama no deserto
Eu vou sacudir o que dizem ser adeus.

Leva teu rancor, teu espelho mais antigo.
Leva o que couber no teu corpo tão vazio.
Deixa meus escudos. Deixa, eu fugirei do frio
Mesmo que viaje à neve das cordilheiras.

Mas a noite é longa, nas malas e nas tristezas.
Leva tudo agora, que a manhã não se demora.
Deixa, eu mesma espanto o que tanto ainda me cala
 E o teu desamor me dói mais quando nem falas.

Mas quem sabe amigo...
Um dia eu te lembre
No beijo esquecido
Na palma do tempo
Na concha das horas.

Astronave de Papel

Astronave de Papel
(Marco Aurélio Vasconcellos, Jaime Vaz Brasil)

É prima dos cataventos,
Mas não vive em cativeiro.
Ela conversa com anjos,
Veste sol no corpo inteiro.

Astronave campesina,
Astronave de papel.
Leva sonhos estrelados
Pelas fronteiras do céu.

Pássaro imóvel nas brisas,
Inquieto nas ventanias.
Asa aberta em tardes claras.
Passaporte de alegrias.

Na armação dessa nave,
Folhas leves e sortidas.
São remendos do espaço,
Com estampas coloridas.

Essa pandorga, tão mansa,
Que à mão dos ventos flutua,
Carrega olhos atentos,
Direto ao mundo da lua.

É uma janela nas nuvens,
Transportando as fantasias,
Do astronauta menino,
Que namora as três-marias.